Pe. Fernando Steffens
A poesia deixa a vida mais leve...
Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Prêmios Livro de Visitas Contato Links
Textos
Breve ensaio sobre a poesia

     A deflagração de uma alma poética não se dá no êxtase de uma declamação de Shakespeare, mas quando no cotidiano da vida, em sua ligeira rotina, um movimento qualquer é visto sob a lentidão do olhar que captura, da alma que apreende, do espírito que reconhece um frêmito de vida por detrás do ato. É preciso silêncio, sensibilidade e pobreza para esta liturgia.
     
     Ser poeta é, digamos, a última bem-aventurança do cânon bíblico. Soa belo, inclusive: bem-aventurados, os poetas, porque compartilham da arte da criação. A poesia é o oitavo sacramento, o oitavo dom, a maravilha do mundo ainda não elencada – e, por mais que tentemos, ainda falta dizer o que a poesia é, o que é o poeta. Quando me refiro a essa sensibilidade para com as coisas ordinárias, cito um exemplo. Vem de Dom Hélder Câmara e se chama Ave, gratia plena!

“Encheram de tal modo o copo d’água
que era difícil segurá-lo
sem que transbordasse...
O coração estremeceu
descobrindo
no episódio tão simples
imagem comovedora
da Cheia de Graça!”     
    
     “Descobrindo no episódio tão simples”. Eis a revelação de uma alma prenhe de poesia. Não é apenas uma questão de fazer versinhos rimados ou usar palavras pinçadas no dicionário, que sugiram alta eloquência. O português clássico de Machado de Assis ou de Castro Alves, ou aquele tão coloquial de Cora Coralina, ou o autóctone dos cordéis de Patativa do Assaré, ou os tão teologais de Adélia Prado, todos eles seriam nada se pretendessem apenas se travestir de grandiloquência ou serem tão somente versos dos becos de Goiás ou das vidas severinas nordestinas. A substância poética está no invisível que o verso revela, no poder de transcendência que há em si e por si, sem ser preciso para isso, fugir da beleza nua e crua da vida. A diferença entre um versinho e uma poesia é igual a que há entre música e barulho, entre um mictório e uma obra de arte.
     
     Ser poeta não é, obrigatoriamente, escrever poesias. Até hoje não se tem registros, creio – a não ser nos contos –, de que alguma criança de dois ou três anos tivesse escrito um poema. No entanto, há latente nestes pequenos tanta poesia quanto nas bibliotecas do Vaticano. Soa poético nos ouvidos da mãe o primeiro vagido após o parto. A mãe se enche de vida, da mesma vida que antes estava em suas entranhas. Depois, terá mesmo lirismo as primeiras vezes que ouvir “mãe”, que ele ouvir “pai” e, mesmo os sons tão somente guturais, sem nenhum fonema ainda, terão melodia poética.
     
     Conseguir pendurar a vida em varais poéticos, de algum modo, é fazer um duplo movimento: deixar escorrer seus excessos, seus pesos e fardos extenuantes, quase mais que cruzes sobre os ombros, tal qual as roupas que escorrem a água em demasia que restou da lavagem. Um quê de poesia alivia muitas dores, devolve muitas esperanças, resignifica muitas vidas e, mesmo, a própria morte. Para que esse movimento aconteça é indispensável a leitura dos poetas. A sensibilidade alheia refina a nossa, educa o olhar do leitor que, sem grande esforço, desperta de uma letargia que o deixava indiferente à poesia que se declamava à sua volta, ou, fecunda de sonhos e de pássaros, de girassóis e de inquietudes, de sangue novo nas veias e de intuições assombrosas o sono mesmo da vida.
     
     O segundo movimento deste ato de suspender a vida à poesia é o de deixa-la em exposição, à mostra, para que quem passe na rua a veja. Esse varal de que falo é uma metáfora que tenta, apesar dos limites da linguagem, dizer que a poesia tem um poder de vendaval e, ao mesmo tempo, é leve brisa. É vendaval por varrer a sujeira, fazer cair os frutos podres, sacudir para valer o que está aí. Tome nas mãos um Ferreira Gullar e diga se não há um vendaval em seus versos, mais parecem chicotes a expulsar vendilhões do templo. Ou ainda essa vida pendurada que João Cabral de Melo Neto expõe para nós quando faz um rio falar:

“E vi todas as mortes
em que esta gente vivia:
vi a morte por crime,
pingando a hora na vigia;
a morte por desastre,
com seus gumes tão precisos,
como um braço se corta,
cortar bem rente uma vida;
vi a morte por febre,
precedida de seu assovio,
consumir toda a carne
como um fogo que por dentro é frio.” (O Rio)
     
     E, ao mesmo tempo, é brisa suave, delicada, que roça a pele humana da existência e desenha nela o primor do alvorecer de algo sempre novo. É brisa que insufla novo fôlego, tal qual Espírito no princípio da Criação, e nos recoloca em ordem de batalha. Um verso leve que nos faz aportar em algum lugar que nem sabemos direito onde é, mas queremos estar lá. “Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos vazio” – é Ana Cristina Cesar. Um convite, um desejo, uma necessidade, um recomeço, uma prova, uma contemplação apenas – tudo dentro de um olhar e desses dois quartos, metáforas para tanta coisa.
     
     Não se é mais poeta pelos títulos que se tem, pelas conferências que proferiu, pelos livros publicados. Um poeta o é pelo modo como ele vive a vida, pelo jeito com que tange suas dores, com que celebra o “todo-dia”, com que contempla o trivial. Não só. Tende de haver uma revolta de nobre causa dentro de si, um desapego franciscano, um temor diante de algo que seja maior do que nós e, sempre, uma alma de criança.
Padre Fernando Steffens
Enviado por Padre Fernando Steffens em 01/05/2020
Alterado em 06/05/2020
Comentários
Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Prêmios Livro de Visitas Contato Links