Carta num envelope atrás de um muro
...sonhava com o momento em que poderia escrever com liberdade total, na orgia anárquica do corpo: “Quando tudo estiver acabado: escrever sem preocupação de ordem. Tudo o que me passar pela cabeça” (A. Camus, Primeiros Cadernos, p. 427). Ele não teve essa chance. Morreu antes. Eu estou tendo.
(Rubem Alves)
Indo direto ao ponto. Eu quero falar de um terreno abandonado que existe dentro de cada um. Suas flores e seus verdes, seus troncos podres e os entulhos que se amontoam, tudo agora dorme. Hoje quero despertá-los de sua letargia e permitir que eles bailem contigo as cantigas da vida – da vida que não existe mais. É preciso, para isso, espiar atrás do muro encantado que Manoel de Barros criou e assistir tudo novamente, mas agora com poesia (aviso que sem o tempo necessário não dá de fazê-lo). Chamemo-lo não só de Muro, como seu pedreiro-poeta, chamemo-lo de Muro das lembranças de minha vida.
Não possuía mais a pintura de outros tempos.
Era um muro ancião e tinha alma de gente.
Muito alto e firme, de uma mudez sombria.
Certas flores do chão subiam de suas bases
Procurando deitar raízes no seu corpo entregue ao tempo.
Nunca pude saber o que se escondia por detrás dele.
Dos meus amigos de infância, um dizia ter violado tal segredo,
E nos contava de um enorme pomar misterioso.
Mas eu, eu sempre acreditei que o terreno que ficava atrás do muro era um terreno abandonado.
Diante de ti um muro, atrás dele um terreno abandonado, mas dentro, um pomar encantado. Como o menino do poema, violemos o segrego, olhemos para dentro e redescubramos, outra vez, o pomar cheio de árvores, carregadas com as flores das saudades e os frutos das lembranças dos outonos desta tão curta existência. Eis que nele podes encontrar o relógio no qual aprendesse a contar as horas, a bicicleta de teu primeiro tombo, uma tarde de aniversário inesquecível, teu primeiro beijo, o palhaço que tanta gargalhada roubou de ti naquele circo, o jeito único do teu avô, a letra-bailarina de tua primeira professora, aquela mentira que pregasse por medo de dizer o que havias feito, as lágrimas que viste escorrer no rosto de tua mãe, um sonho que tinhas quando criança, hoje tão tosco, tão irrisório, uma amiga que não vês a muito tempo, o sol daquele meio dia, mas tem que ser daquele mesmo e não de outro, pois é aquele meio dia, descascando laranjas, que ficou fotografado aqui dentro...
Que agradável delírio este das reminiscências atrás de um muro. Por quê?, por que esquecemos tão facilmente essas coisas tão elementares, tão essenciais, tão saborosas e damos vazão a esta enchente de sentimentos mesquinhos, torpes, tão adultos e inconsequentes, gananciosos e letais, que nos afogam não em delírios, mas em desesperos. Se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse; acuse-se a si mesmo de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas – escreve Rilke nas suas Cartas a um jovem poeta.
A poesia deixa a vida mais leve – é minha tese. Sem camuflar seu drama, sem amenizar suas injustiças, sem ignorar suas dores – óbvio, senão não é poesia. Mas por ter essa capacidade de ver além do muro – dos tantos que vamos construindo e que deixam tudo mais estreito, artificial, provisório – é que a poesia resgata a verdade, pura, intacta, sem o verniz do tempo – apesar do verniz do tempo. Eu fui à floresta porque eu queria viver deliberadamente, queria sugar toda a essência da vida, para que quando o inverno chegasse eu não descobrisse que eu não vivi – conforme ficou gravado em mim o que se diz na Sociedade dos poetas mortos. A vida se torna insuportável sem lembranças. Por mais vagas que possam ser, nos devolvem algo que é nosso, só nosso, como é só dela uma criança no ventre de sua mãe. E é preciso impedir que alguém as roubem de nós. Hoje, tendo por padrinho Ferreira Gullar, batizo essas deliciosas saudades com o nome de moça branca como a neve, eternamente viva nessa Cantiga para não morrer:
Quando você for-se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.