Carta na manga (de alguns)
Então o Senhor passou.
Antes do Senhor, porém, veio um vento impetuoso e forte, que desfazia as montanhas e quebrava os rochedos, mas o Senhor não estava no vento. Depois houve um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto. Passado o terremoto, veio o fogo, mas o Senhor não estava no fogo. E depois do fogo ouviu-se o murmúrio de uma leve brisa. Ouvindo isto, Elias cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta. (1Rs 19, 11-12)
Se agora há uma certeza unânime e tão escancarada por aí, desde o presidente americano até o último morador da Oceania, a de que Deus está do nosso lado, pergunto: antes havia dúvidas? Que certezas haviam, então? Eu sei que aprendemos de nossos avós, dos santos, do próprio Jesus para rezar sempre, se apegar a Deus nos momentos difíceis etc. Mas olhando a grande massa, quase dá a impressão de que Deus está tirando férias em Marte e, diante do acontecido, precisamos rezar, rezar, rezar e rezar até que o medidor de oração – batizei-o de oraçômetro – alcance as alturas do distante planeta e, enfim, chegue aos seus ouvidos e Deus volte para a terra de onde saiu.
A tempos venho me perguntando sobre isso e a realidade atual evoca ainda mais a reflexão a respeito. Quanto é preciso rezar até que um milagre aconteça? O que depende da nossa oração, o que não depende? Como saber se foi a oração ou o gratuito cuidado de Deus por seus filhos que foi decisivo? Ou a parceria de ambos? Deus está condicionado à nossa oração para agir? O que, afinal, significa rezar? Que finalidade há nessa prática? Também estou em busca de respostas e creio, elas não estão na superfície.
Quando vejo, por exemplo, “procissões virtuais” sendo realizadas até por aqueles que eu julgava inteligentes, com um conhecimento mínimo o suficiente para não replicar tal feito que, bem verdade, não passa, eu diria, de uma fake espiritual, realmente fico escandalizado. Ou, então, os que juram de pés junto que o papa pediu que se repetisse mentalmente “estou vacinado com o Sangue de Cristo: nenhum vírus pode tocar-me” – essa recebi ontem – e colocam, não duvido, toda a sua fé nisso. Ou ainda, os que em nome de uma fé qualquer, sem identidade nem razões, são simplesmente repassadores de futilidades espirituais, banalidades da fé, crendices superficiais, tal como alguém que vai ao culto, à missa por não ter mais o que fazer na vida.
Um adulto com uma fé infantil, que acredita em tudo o que dizem, com uma fé sem iniciação, simplória, que desconhece verdadeiramente a Deus, uma fé movida por uma mistura de água com açúcar, desprovida de inteligência, é um adulto que professa fé num amuleto, não em Deus mesmo. É uma fé, uma espiritualidade self-service. Não é que quem a tem não acredite em Deus. Não é isso. Mas acredita de modo equivocado. Uma fé em modo be-a-bá. Julgo dizer que Deus nunca vai atender muito daquilo que pede – e não será por falta de oração, dizem Pai Nossos e Ave Marias aos montes. Mas rezam a um deus que não existe, não ao menos do jeito que acham que Ele é. Não se preocupam, por exemplo, em se questionar se Deus os ouvirá. Julgam a priori que ele tem que ouvi-los, afinal, estão rezando e quem sabe só irão parar de rezar quando forem atendidos. Não tomam consciência de que Deus, sendo livre, pode nos atender ou não. Mas como assim, padre? Então, Deus não me escuta? É mais ou menos isso. A gritaria antes do jogo em tom ensurdecedor que começa com PAI NOSSO QUESTAIS NO CÉU... e termina na algazarra indecifrável não é uma oração. Deus, quando muito, estaria na varanda celeste assistindo ao jogo e taparia os ouvidos durante o ruído espiritual. Nem tudo Ele escuta, só o que é dito com o coração, diz são Cipriano. E coração não é sinônimo tão somente de sentimentalismos, não é um reducionismo abstrato e categórico de uma emoção, de um afeto. Coração é a expressão da vida em toda a sua realidade nua e crua, bela e triste, encantadora e horrenda, mistérica e simples. A oração da mãe desesperada que clama a Deus pela vida do filho, mesmo sem fazer ideia do que seja Santíssima Trindade, o médico que, mesmo não professando fé nenhuma, pede confiante ao seu paciente que peça ao seu Deus por ele durante a cirurgia, o publicano que reza batendo no peito e se reconhece pecador, o monge que passa horas do seu dia, da sua vida, em silêncio interior na busca por Deus. Apontamentos de oração do coração. Da mesma forma, precisamos ouvi-Lo com o coração, ao invés de escutar nossa própria resposta à oração que fizemos, dando a entender que meu deus concorde comigo em tudo.
A definição que o autor da carta aos Hebreus dá de fé é magnífica, profunda, radical, sem rodeios, mas, pendurada por um único e frágil fio da teia da aranha. Fé é a certeza daquilo que ainda se espera, e a demonstração de realidades que não se veem (1,11). Para que usas a fé? Ela sustenta o que em ti? Para quais momentos ela serve? Uma fé que acredita por medo de Deus, é medíocre. Uma fé que cria suas próprias verdades é pródiga. Uma fé que existe apenas para conseguir o que quer é mercantil. Uma fé que confia, mesmo quando nem tudo vai bem é honesta. Uma fé que pede e, ao mesmo tempo, se oferece, é sensata. Uma fé que permanece orante, mesmo diante do silêncio divino, é convicta. Uma fé que está sempre em busca de crescimento é fermentada. Uma fé que duvida sem desacreditar é madura. Uma fé que não tem medo é ressuscitada. Uma fé sem obras é morta. Uma fé humilde é fecunda...
Que muitos tenham se lembrado de Deus por causa da pandemia, ótimo. Deus usa de todas as oportunidades para ser encontrado, para ser revelar – isso é bíblico. Mas, que Ele não precise voltar para Marte quando tudo passar, por ser trocado outra vez por outros. Afinal, tudo voltou ao normal.