Crônica para ser lida antes do velório
Eu entendo que, sobre a morte, realmente é difícil falar. Mas vou discorrer sobre a minha, por isso, sinto-me livre e à vontade. Embora soe ruidoso, é preciso pensar a própria morte. Não que isso nos livre dela, óbvio, mas faz de si um parente sempre mais próximo. No relógio de Deus – ou no relógio da vida, para os descrentes – sempre faltam cinco minutos – para meia-noite, para a virada a um novo dia, assustadoramente desconhecido, para tudo ter fim e para que tudo comece. Em algum momento o relógio começará a andar e nada, absolutamente nada poderá ser feito. Consciência desses minutos finais? Talvez sim, talvez não. Seus mistérios ultrapassam minha razão. Fato é que o relógio está ali, pendurado na parede...
Sendo bem proverbial, leva-se uma vida inteira para se aprender a viver. E, agora, venho eu com essa conversa de que só se tem cinco minutos para aprender a morrer. Pior, nem sabemos quando a contagem se inicia. Digo-te: os cinco minutos são reais, mas também, metafóricos. Eles acompanham os passos que ensaiamos, os tropicões que damos, na coreografia do viver. Porém, temos, igualmente, cinco minutos para a canção: “é preciso saber viver”. Há cinco minutos de lições, vida afora. Cinco minutos antes do embarque, para aprender o valor da presença, cinco minutos antes do casamento, para aprender o valor da espera, cinco minutos antes do parto, para a surpresa de um rosto, a melodia de um choro, cinco minutos de silêncio, para ouvir a voz de Deus, cinco minutos de solidão, aguardando cessarem as lágrimas, cinco minutos de êxtase, descobrindo os delírios do prazer, cinco minutos inesperados, para uma surpresa e um grito de felicidade, cinco minutos caminhando, até que se descubra o caminho, cinco minutos de sofrimento, para aprender o quanto custa amar.
Mas eu disse que vim para falar da minha morte e divaguei por outras terras. Quando restarem cinco minutos para minha partida derradeira, para que os pés se desenraizem de vez deste barro e a Verdade me liberte por completo, assim que o único ponteiro deste relógio na parede começar a andar, só havendo cinco minutos para a eternidade e o tempo, enfim, se diluir, talvez aconteça alguma coisa, talvez não. Ter essa consciência me devolve o sabor da vida e o seu peso. Por mais ridículo que pareça, torna-me mortal e livra-me do desespero. Quase chega a salivar na alma o doce sabor da morte. Passados os meus cinco minutos, começarás a chorar, instintivamente, naturalmente, copiosamente, soluçadamente talvez. Serão os teus cinco minutos para aprender, de um modo totalmente novo, o meu valor.
Alguns eu deixarei que chorem demoradamente. Sei que são lágrimas de pesar e gratidão, jamais de desespero. Lágrimas próprias de quem me amou, me quis bem, me compreendeu, gastou muitos cinco minutos comigo ao longo da vida. Lágrimas de saudades, aprendizados, lembranças fotografadas, e tudo o mais que me mantém vivo, ressuscitado em algum lugar – dentro.
Mas eu quero mesmo é me dirigir a você que só agora, quando já não adianta mais, tirou cinco minutos para estar comigo. Agora, quando já não estou mais. Agora, quando chorar ou sorrir, escutar ou falar, são verbos em estado de inércia, sem nenhuma declinação plausível. De que serve tua oração e teu pesar se nunca tive tua presença e teu sorriso? Não que sejam falsas tuas condolências, são apenas estéreis. A presença na hora da morte não supre as ausências nas horas da vida. Há muitos que, mesmo não podendo vir, estão bem mais presentes do que vós. Não olvides: restam cinco minutos apenas. Decida se serão de vida ou de morte. No mais, deixo, não aos outros, apenas para ti, estes versos, de título bem apropriado:
quando chegar
Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista dos mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um doce a calmo descanso.
(Ana Cristina Cesar)
Observação final: esta crônica não contém toda a verdade.