Carta de Deus aos seus
A terra era a flor da esperança
que o cosmos dera à luz [...]
Ela estava imersa em seu ar
como a rosa em sua fragrância.
(Franco Ferucci – A história de Deus...)
Olharão para aquele que traspassaram.
Mas como, mas quando, se ainda estamos às cegas?
(O autor)
Tempos atrás um escritor italiano de nome Franco Ferrucci escreveu minha história contada por mim mesmo. É que o título da obra ficou em terceira pessoa: A história de deus (contada pelo próprio) – confesso, não lembro se ele escreveu deus com maiúscula ou minúscula, mas não importa, sei quem sou do mesmo jeito. Contudo, reconheço bonita a reverência devota com que me tratam quando do uso respeitoso dos nomes e pronomes pessoais.
A questão é que agora resolvi escrever eu mesmo, não a minha história, mas umas opiniões, umas queixas, umas palavras, afinal, não é por ser deus que não tenho direito de tê-las. Problema maior se apresenta, naturalmente, quando eu as manifesto. Que seja! Mas por onde começar? Esse sempre foi um dilema meu. Percebo ao longo desses milênios todos – e lá se vão muitos – que leva tempo até que minha voz lhes chegue aos ouvidos e sempre me pergunto: será que me fiz entender? Às vezes julgo que sim, outras que não. É que, quem sabe, com o tempo, foi eu que fui ficando parecido com meus filhos – uma certa alteração no projeto original, digamos. O Andrade – Drummond para vocês, como o conheço desde o ventre, acostumei-me a chamá-lo assim – Andrade tem um versinho que gosto muito, com o qual me identifico e revela-se fiel àquele projeto original referido acima. Diz ele – e é preciso registrar que A mesa de Drummond é testemunha de uma história de pai e filhos – diz do filho mais velho o poeta que, à medida que envelhece, vai estranhamente sendo retrato teu sem ser tu.
Meio que sem querer acabei iniciando e deixando meio claro qual minha intenção. Mas não quero perder a solenidade, afinal, sou Deus e isso exige certo comportamento, certa compostura, habilidades políticas etc, etc, etc... (um parênteses oportuno: nem todo messias corresponde a mim, só para que fique claro). Vamos aos inícios protocolares:
“E Deus disse: ‘ Vai dizer ao povo, depois anota no livro: Quando me fiz igual a vocês, quando, não havendo outro jeito que tivesse encontrado, após ter gasto todas as minhas cartas da manga, como dizem entre vós, quando aceitei tocar vossa dor, foi para que eu a pudesse sentir também. Só há um jeito de sentir a dor daquele que passa fome, frio, medo, rejeição, solidão, abandono, injúria... É passando também fome, frio, medo, rejeição..., e não apenas falando sobre todas essas coisas, em discursos eloquentes. E assim serei, e assim será até o fim dos tempos preditos por mim. Um dentre vós disse com toda propriedade: sempre haverá uma cruz esperando por seu crucificado. Eu repito: toquei, não só, assumi vossa carne para sentir vosso pranto e vossa dor. Não estou indiferente àquilo que nesses dias padeceis vós. Jamais me esquecerei da dor dos meus filhos, elas são a minha morada. Sois vós que com frequência – eis aqui meu lamento – se esquecem da dor alheia. Escutai-me, atenção: não faço nenhum mal contra vós, porque vos amo. Porém, aproveito o mal que vós mesmos causastes para ensinar-vos outra vez o essencial. Criastes bezerros de ouro, cujo brilho é falso, nos quais não há felicidade verdadeira. Fostes ao deserto, cedestes à tentação, vos acostumastes com essa vida e chegam, então, as consequências. Não lestes o que está escrito: foi numa terra deserta que eu vos encontrei, na solidão medonha do deserto (Dt 32, 10)? Desejo outra vez mais cuidar de vós, cercando-vos de carinho e proteção, mas vocês querem tudo para ontem – milagres, portentos, sinais. Deserto é deserto. Há desidratação espiritual, há distâncias quilométricas até o primeiro oásis, há carência de tudo e os recursos, todos longe do alcance das mãos, há contrastes térmicos que desiquilibram qualquer organismo, há armadilhas, peçonhas, areias movediças. Deixe eu vos lembrar mais uma coisa: no deserto, quem conduz é o Espírito mas, quem lá vos aguarda, é o diabo. Os que se deixam conduzir atravessam o deserto, depois o mar, atravessam a noite, atravessam a dor, como meu Filho, que passou no meio deles e seguiu seu caminho (Lc 4, 30). Porém, há muitos – e eu os amo também, mas como sofro por eles – há muitos que preferem fincar pé no deserto, montar aí a sua tenda, morrer de sede, provar de todo veneno, afundar-se na própria areia, iludir-se com suas miragens – mais desérticas que a própria aridez que lhe é própria. São cegos guiando cegos. E pouco consigo por estes, pois minha providência não anula sua liberdade, ao contrário, carece dela. Outra vez, em verdade, vos digo: não sou indiferente aos vossos sofrimentos. Eu já ouvi vossa oração. Eu já sabia de tudo antes. Mas não se esqueçam, filhos: tudo o que fizestes e o que não fizestes ao menor dos teus irmãos foi a mim que sim e que não. E tudo, é tudo. E todos, é todos – como deserto, é deserto. É muito pedir que sintam, experimentem, toquem a minha dor também – um pouco, ao menos?