Escrito sobre a escrita
Minha alma de poeta quer falar
Mas a poesia, relutante,
Nega-se a sussurrar-se aos meus ouvidos.
Respeito-a
(devo ser-lhe obediente)
Ainda que me custe
Ainda que me doa
Ainda que eu sofra.
Penso:
Quantas vezes
Quiseste-me poesia
E não passei de folha em branco.
Ler é um jeito prazeroso de aprender. Já escrever é uma necessidade vital, uma espécie de respiro, um terceiro pulmão que criei, um modo de deleite ao que me permito e busco. Sem mais dizeres melífluos, abandono o caminho das flores e tomo o caminho agreste das pedras, pois escrever é também um desafio, um parto, uma dor. É se expor. A escrita é uma arte sedutora para quem a exerce, e se torna taça embriagante para aquele que, ao ler, sente que um mundo se constrói, concomitante, dentro, em volta, por um momento, para sempre. Difícil saber onde acontecerá esse enamoramento, esse clímax, esse delírio literário, essa dança sobre o palco cujo par é linhas redigidas e olhos famintos. Escrever é sagrado e fecundo. Acolher uma escritura – a Sagrada ou aquela que se reveste de sagrado – é tornar-se portador de algo divino. Lembremos: “No Princípio era o Verbo... e o Verbo se fez carne e habitou entre nós.” Habita dentro de um bom texto qualquer espírito que foge ao controle do escritor e é este mesmo espírito aquele que “possui” quem le e nele se faz carne, vida, caminho, resposta, provocação, anedota, lágrima, sentido, prazer, clareira, imaginação, silêncio.
O melhor texto está sempre por vir, a intuição mais arrebatadora ainda não aconteceu, a frase perfeita caminha distante, mas, sinto, aproxima-se, o conteúdo de melhor leitura aguarda ser explorado, a estética textual mais límpida é um sonho, a poética homérica ou shakespeariana, beirando a perfeição, faz-se anseio, em suma, o conseguir dizer o que se quer, de modo pleno, traz consigo as dores de parto que geram a vida. Para o músico é a canção, para o poeta é o verso, para o artista é performance, para o escultor é o entalhe, para o escritor é o encontrar a palavra certa e encaixá-la de modo simétrico, sem deixar vazão para que a ideia escape, sem ditar normas à verdade, tampouco ocultá-la, sem que alguma dúvida lesione o conjunto da obra.
O primogênito dos escritores, a Palavra pela qual tudo foi criado, o detentor de todo o saber, a mão que conhece todos as letras e números, todas as gramáticas e línguas, suas regras e seus limites, quanto custa a Ele escrever em seus filhos, com letras que são outras, a sua Escritura, o seu Testamento – Velho ou Novo. Se ao escritor compete superar a página em branco, a Deus compete superar o quê? O dilema no qual me encontro, a esta altura do texto, parece trair minha própria lógica, ao passo que responde às buscas das quais falo e pelas quais almejo. Enquanto aquele que escreve, vou superando a página vazia e, de frase em frase, parágrafo após parágrafo, o texto vai se tornando plástico e, delicadamente, ocupa seu espaço de sentido. Acomoda-se, de modo satisfatório, à tentativa de seduzir e fecundar a alma da leitora, do leitor. Por outro lado, escorrego outra vez o olhar até a poesia que abre a reflexão e já não sei se continuo como escritor ou se me recolho em meu poeta e, debruçado sobre o pensamento, garimpo, o quanto for possível, qualquer mínima resposta ao que agora se apresenta como pergunta:
Quantas vezes
Quiseste-me poesia
E não passei de folha em branco (?).
Escrever é escrever-se. Escreve-se com sangue, escreve-se com a vida, escreve-se a partir do que se é, a partir do que se tem, a partir do que se busca. É arte e como tal é exigente, é livre, é bela. O “Faça-se em mim segundo vossa palavra”, registrado na Escritura Sagrada, é mais poético do que supúnhamos. E é mais voraz do que quiséramos. Quando alguém permite ao versículo sua realização, a folha em branco do verso ganha tinta e se inicia o processo de restauração. E todos os demais versículos, cada qual ao seu tempo, ganham nova oportunidade de serem impressos nos tecidos com que se cose a vida. Quem os escreverá? Eu nesta folha? Deus em mim? Ambos em ambos.