Carta para de vez em quando, num fim de tarde...
A morte é um dia que nunca chegou
O término de um dia é também, porque não, o fim da vida – ou melhor, quem dera se fosse assim. Explico-me. O que move minha reflexão não é o melodrama do ditado “O amanhã a Deus pertence” ou seus equivalentes. Tampouco a capciosa filosofia grega, motriz dos nossos tempos líquidos, que se funda no carpe diem – viva o dia! Digo que o refrão da Legião Urbana seria bem mais inspirador e verdadeiro: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade, não há”.
Imaginar o retorno para casa após a jornada concluída, levando no coração alegrias, felicidades, gratidão, desejos, esperanças, feridas em processo de cicatrização, responsabilidades honradas, as preocupações do amanhã livres dos inapropriados desesperos, o amor saboreado em pequenas doses, mas sempre suficientes para não esvaziar o pote, as justas inconformações que não permitem a tibieza e o que mais couber no relicário das horas vividas. É disto que falo. É daquilo que leva o poeta a escrever seu Testamento de um fim de tarde:
Depois de descobrir
(não como novidade)
que não preciso mais
além do que tenho
deixo o testamento desse dia:
“Declaro, para sempre,
e para os devidos fins
que hoje, além de estar,
hoje, eu sou feliz.”
E não sei explicar o porquê.
Tampouco isso me importa.
Basta-me essa poesia.
E o silêncio.
Com boa dose de razão prática e encharcado da leveza da verdade revelada pela poesia, o dia de amanhã é a possibilidade de todas as incertezas, a garantia de todas as impossibilidades, o resultado de tudo o que não se sabe ainda, a clarividência do que se esconde atrás da penumbra do que, por ora, não aconteceu. Diante disso, dizer que o dia de hoje, com todas as peças que o modelam, pode ser o fim da vida, desperta-nos para a consciência da fragilidade do próprio respirar, para a ideia do saber-se não pertencente a este mundo para sempre, para a fé que reza com o velho Simeão: “Deixai, agora, vosso servo ir em paz, porque meus olhos viram vossa salvação” (Lc 2, 29-30), para um desapego total daquilo que, por fim, nem é nosso. O mais exigente nessa vida talvez seja aceitar que o que realmente nos pertence é somente o que ainda não temos. E que o que achamos ser nosso só servirá se nos conduzir à posse do misterioso bem que espera por nós. No mais, “Vanitas vanitatum, dixit Ecclesiastes; Vanitas vanitatum, et omnia vanitas – Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes; Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.”
Criamos tantas dependências que, para supri-las, perdemos o essencial, o significado profundo das pequenas coisas, a beleza do trivial, a importância do óbvio, do ordinário, do cotidiano. Adoecemos ligeiramente o olhar, os ouvidos, a mente, os afetos, as lembranças porque, ao entardecer, ao invés de contemplar, ocupamo-nos com as preocupações do amanhã... E se o fim fosse num hoje como este, o testamento seria outro, mais pesado, menos saboroso...
É, então, possível ter sempre um fim de tarde tal qual o que descrevi mais acima? Claro que não. Mas a possibilidade de pensa-lo permite sua realização mais frequente e, quem sabe, a transformação de outros nele. Não sei até que ponto o mundo material criado por Deus corresponde ao mundo que criamos para nele viver. Penso demoradamente sobre isto, gasto tempo na reflexão, é edificante fazê-la. Mario Quintana me ajuda com seu olhar igualmente crítico – Dos mundos:
Deus criou este mundo
O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo
Decerto não gostou lá muito do que via
E foi logo inventando o outro mundo
O Covid-19 desponta como o vilão de todas as tragédias e haja empenho de toda parte em busca dos louros da vitória, uma corrida de tipo armamentista para ver quem o nocauteará. Salvo os interesses políticos, econômicos, midiáticos por trás desta empresa que avança em marcha, torcemos e rezamos para o seu fim. Contudo, fazemos saber que há mazelas bem mais antigas e letais que esse novo inimigo invisível. Há os mesmos dias de antes, vividos freneticamente, ao ritmo de atrasos nunca vencidos. Há os repetidos fins de tardes de antes, que, sob os impulsos das mesmas frívolas necessidades, continuam emendando dias e noites sem perceber que os seus céus são diferentes. Cuidemos com a desculpa do “novo normal”. Será que é tão novo quanto lhe pintam?
É verdade que a capacidade de adaptação que temos é algo fantástico. Por mais que nos custa, acabamos por nos acostumarmos a realidades novas. Acostuma-se ao novo emprego, à nova moradia, à cadeira de rodas, ao grau dos óculos, à ausência de quem partiu etc, etc, etc... Que sejam boas ou ruins essas novidades, isso é campo subjetivo. O que me fez acrescentar esse último parágrafo é uma pulga atrás da orelha: que novo homem, que nova mulher, que novo jovem, que nova família, que novo fim de tarde surgirá desse “novo normal”? Com todo o respeito e com a devida licença para um grito engasgado aqui: se for o Covid-19 a esperança de uma mudança no mundo caótico que criáramos, que fé miserável que temos, meu Deus!
Tenho dito.