Carta cheia de uma feliz desilusão
No princípio era a Palavra... Nela estava a vida
(Jo 1, 1.4)
A exato um ano dizíamos uns aos outros: feliz ano novo, muita paz, saúde, sucesso e blábláblá... – sempre as mesmas contas do rosário de fim de ano. Se sinceras ou apenas costume, reais ou teatrais deixemos para depois. Não nego haver uma natural expectativa ao que é novo, ainda que este novo seja simbólico – a verdade é que ficaremos mais velhos, isto sim. Porém, há essa necessidade de esperança dentro de cada um e a passagem de um ano ao outro vem acompanhada desse movimento interior que transcende os minutos do relógio, a marca do calendário posto que inaugura deveras algo novo – ainda que eu não saiba o que seja.
No colégio, um novo ano. Nos relacionamentos quiçá alguém para fazer companhia, uma nova amizade que se descortinará, um amor à espera do beijo, um sim para sempre. A vida nova no ventre, dada à luz e um novo ritmo, nova rotina, novos desafios, aprendizados nem se fala. As novidades no trabalho, nas redes, no mercado financeiro, no layout do quarto, nas fotos de família. Notícias que chegarão fresquinhas, mas serão balde de água fria no calor das coisas do dia-a-dia e tudo tomará outro rumo: um acidente, uma doença, uma separação, uma morte, um adeus. As mudanças, os aniversários, as decepções, o inevitável, o improvável, o impossível, as oportunidades e os medos, as tragédias e as comédias, a fé e o desespero... Coisas aguardando sua vez.
Não, eu não estava a falar do prometéico ano de 2021, eu estava a falar da vida, para muito além das horas do sol. Sei que com o tempo corro o risco de me tornar chato nas reflexões, ter fama de ser o do contra, aquele que critica tudo, o que põe vinagre no lugar do açúcar. Bom ou ruim, sempre há necessidade de alguém assim. Mas a intenção é alargar horizontes, para isso é preciso pensar fora da curva. Até porque a pobreza de criatividade no que se diz por aí é flagrante de falta de razão, de não ver as coisas como elas são, de não pensar com os pés no chão, iludindo-se com a cabeça na lua. É mais do que óbvio que com as imprudentes aglomerações, a tendência é termos o pior início de ano desde a muito não visto. Não vê quem não quer. Ainda assim: feliz ano novo, muita paz, saúde.... (Saúde? Para muitos, nem física nem mental...)
Pessimismo de minha parte? Não. Apenas devaneios avulsos. No lugar de pessimismo eu usaria desilusão. Estive pensando com meus botões sobre essa palavra: desilusão. Descobri que, coisa boa, é viver desiludido. Sim, pois ilusão é uma farsa, uma quimera, beirando riscos de mentira. Sem ilusão, completamente desiludido, resta-me o que há, o que é, o que tenho. E naquilo que está posto é que buscarei a transcendência, o sobrenatural. A estultícia me lança na ilusão. Já a fé firma meus pés numa certeza, ao passo que a esperança que vem do alto não é reduzida a uma virada de ano. Na Palavra, que existe desde o princípio, é que encontro a vida, sempre nova, sempre criativa, sempre prenhe, nunca traidora, nunca ilusória, jamais mentirosa, jamais ultrapassada – feito feliz ano!