Carta-convite: olhai os lírios do campo
Olhei até ficar cansado
De ver os meus olhos no espelho
Chorei por despedaçado
As flores que estão no canteiro
(Flores – Titãs)
George Orwell criou uma sociedade onde os bichos mandam, Saramago nos deu uma cidade na qual todos estão cegos, Georg Lucas construiu um mundo nas estrelas, C. S. Lewis abriu uma porta dentro do tempo e nos fez atravessá-la, J. R. R Tolkien deu vida e voz a tudo o que existe em terras distantes... Eu fico a pensar numa terra de mudos, cuja única linguagem fosse a arte. Poesia, música, literatura, obras arquitetônicas, teatro, dança, telas, monumentos, rituais, enredos... Sem ruídos, sem palavreados vazios, sem idiotices, sem conversa fiada. E dou-me conta de que este mundo existe. Basta fazer silêncio e contemplar, conhecer a história e compreender, aferir a sensibilidade e ouvir além da voz, ler com o olhar, deixar brotarem as perguntas e inspirar as respostas.
Os afrescos, as mobílias, os movimentos – ritmados ou estáticos –, as colunas e colunatas, átrios e pórticos, os símbolos e as reverências, os contos, os dramas e mesmo as fábulas, fotografias que captam o invisível, que descrevem uma alma – o amor ou a dor –, as expressões sobre o palco – umas que perguntam, outras que respondem, outras que calam ou consentem... Tudo para dizer que não somos máquinas, que entre respirar e viver há diferença, e outro oxigênio da vida é a beleza, é aquilo que seduz sem ser vulgar, é o que nos enriquece sem fazer preço, atrai sem escravizar, não depende da moda posto que é vital, não envelhece uma vez que tem mística e, se envelhecido, ainda mais do eterno se aproxima.
A beleza salvará o mundo – salvo engano, é Dostoievski. O barulho o destruirá, desde já o corrói. O barulho é feio. Urge a necessidade do silêncio e da contemplação em meio à virtualidade do mundo e dos relacionamentos. Falo a partir de mim. Quanta falta faz o bucólico, o agreste, a nobre simplicidade, o pôr-do-sol livre do self, as carências humanas supridas por presenças e não por status, stories, legendas e curtidas – tudo tão ilusório.
Olhai os lírios do campo – convida-nos Jesus. Para a mulher e o homem de que tempo o nazareno está se dirigindo? Olhai os lírios do campo... Apelo à beleza, motivação para desnudar os olhos da alma, desafio para o século de agora. Olhai os lírios, eles ainda estão floridos, eles ainda perfumam, ainda embelezam. Não tenham medos, olhai os lírios em volta, sem pieguice, sem sentimentalismos, sem puritanismos. Mas não se esqueça, olhai, mudo, silenciosa e demoradamente, olhai os lírios do teu campo. É preciso. Descubra-os. Redescubra-os. Replante-os. Olhe-os, calada, calado... Fará muito bem.