Pe. Fernando Steffens
A poesia deixa a vida mais leve...
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Textos
A Transfiguração: experimentar Deus no após, no silêncio...

     Quando crianças, as coisas imaginárias, fabulosas e fantasiosas, quiméricas e irreais são tão verdadeiras, não é verdade?! Claro que aos poucos largamos esse mundo ilusório, mas com um tom de transcendência – a transcendência, talvez, seja própria do mundo infantil. Não é sem razão que descobrimos ser preciso tornar-se criança outra vez para entrar na dinâmica, no mistério, na transcendência do Reino, no próprio Reino. Nos contos, particularmente os de tonalidade científica, vez ou outra nos deparamos com portais que conduzem para outra dimensão, outro tempo, outra vida. Uma viagem do tipo De volta para o futuro, uma brincadeira aos moldes Caverna do Dragão, uma metamorfose de efeito Power Rangers. Mas a criança cresce e – ato falho, será? – aquele imaginário infantil vai sendo, pouco a pouco, abandonado e a vida passa a cobrar suas responsabilidades. A criança deixa de sê-la e tudo ganha novos coloridos e sentidos, novas explicações e verdades. As fadas e as bruxas são rebatizadas com outros nomes.

     Essa introdução com fermento lúdico para dizer que nos evangelhos também encontramos uma espécie de “portal”, uma experiência – nada infantil, porém, carente de igual pureza – de transcendência à qual não somente Pedro, Tiago e João são convidados a vivenciar, mas pode se tornar fundamental na vida do jovem que se deixar conduzir a ela. Trata-se da Transfiguração no Monte Tabor, onde encontramos um portal denominado oração. “Enquanto orava, o aspecto do seu rosto se alterou, suas vestes tornaram-se de fulgurante brancura” (Lc 9, 29ss). A sequência do texto torna clarividente que eles entram numa outra dimensão durante e diante, na montanha. Surge personagens “lendários” da história de Israel, tempo e espaço se desencontram, as falas de Pedro se revelam confusas, o ambiente se torna nebuloso e uma voz é ouvida do além. E, de repente, tudo desaparece, a realidade se faz presente outra vez. Contudo um silêncio inquietante acompanha suas vidas nos dias seguintes.

     Pensar a vida de oração como uma espécie de portal que conduz a pessoa a uma dimensão de transcendência é pensá-la para muito além de palavreados decorados e vomitados da boca para fora, uma verborreia cheia de qualquer espírito nada santo. Talvez o mais importante da Transfiguração seja o silêncio daqueles dias seguintes, registrado por Lucas. Não se trata de silêncio obsequioso, cativo, medroso. Antes, é silêncio contemplativo, de mudança, silêncio que diz: alguma coisa aconteceu.

     A questão que colocamos em jogo é o que acontece depois, é a mudança decorrente de uma experiência cujas palavra e razão não dão conta de explicar. A beleza está naquilo que o texto cala, naquilo que não é dito – a não ser isto: houve silêncio nos dias seguintes. Fico pensando em como, após, eles estavam se olhando, sorrindo, trabalhando: leves, livres, serenos, contagiantes, plenos. Aquele silêncio devia falar, não há como ser diferente.

     O mundo digital, universo no qual os jovens vivem imersos, oferece diversos portais: de conexão em rede, de obscuridades, de janelas anônimas, de irrealidades que se juram reais – óculos, câmeras e câmaras, projeções 3D... O problema é que eles não produzem qualquer silêncio transfigurador que fale. É tão somente silêncio, isolamento, mergulho no vazio. A única coisa que salva desse naufrágio é a oração. Experimentar Deus nos silêncios que sucedem as próprias experiências. A oração não é o que vem depois, não é o que fazemos em seguida aos fatos. A oração é o acontecimento em si, é a Transfiguração. No monte quem reza é Jesus, os discípulos participam, testemunham, não entendem, são destinatários dos efeitos da oração, perdem o sentido da realidade pois estão pesados de sono, escutam a resposta da oração de Jesus e tudo acontece sem muito sentido, com pouco lógica. E no fim Jesus fica sozinho. A partir daqui a vida deles se reconfigura. Eles experimentam algo inédito – não sabemos o quê.

     Experimentar é um verbo importante e perigoso ao mesmo tempo. Importante porque permite ultrapassar limites e/ou reconhecê-los, porque afere os sentidos, explora mundos, amadurece o humano de cada um, permite que nos tornemos mais, aumenta o cabedal dos nossos argumentos, revela sentimentos, reações, qualidades e tanto mais. Perigoso por ter um quê de areia movediça em suas declinações. E na vida espiritual, grande desafio que se impõe é o de experimentar o silêncio. Nas palavras do poeta, fotografar o silêncio.
 
“Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre [...]

     Experimentar é fazer silêncio. É fotografar aquilo que transcende e que, por isso, dá sentido. É sair do senso comum para descobrir e se encantar com o mistério sempre presente e oculto no ordinário da vida. Experimentar tem a ver com saborear, com o palatável, com contemplar, com sentir. A transfiguração pensada como portal é um mergulho para dentro, mas sem sair da realidade. Ela não é online, porque senão dependeria de um sinal externo que facilmente pode cair, ser perdido ou mesmo não haver. Experimentar a transfiguração é igual estar sob a sombra de uma árvore em dia de calor: a árvore não sai de si para entrar em mim, tampouco eu saio de mim para experimentar seu frescor dentro das suas folhas. Há uma transcendência: cada um em sua realidade, a árvore lá, eu aqui e o calor no ar, mas de algum modo ela me toca com sua sombra e eu sinto seu afago. A realidade continua existindo, mas um silêncio acontece e eu mudo: meu corpo, minhas sensações, meus cansaços se tornam outros. É nos silêncios que experimentamos.
 
Manuel de Barros, Poesia completa. Ensaios fotográficos.
Padre Fernando Steffens
Enviado por Padre Fernando Steffens em 28/02/2021
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