Carta cega
“A cegueira também é isto:
viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”.
(José Saramago)
Que queres que eu te faça? Mestre, que eu veja.
(Mc 10, 51)
Já se passaram alguns dias, mas aquela descoberta inusitada ainda me acompanha. Já havia passado o momento mais exigente para mim que são as palavras de consolação e esperança, cujo alcance nunca sabemos ao certo. E eis que uma revelação me enche de espanto: ele era cego. De imediato, a mente começou a rodar suas engrenagens e até mesmo minhas palavras, ditas a pouco, foram ganhando novo sentido – ou revelando-se estéreis. Aliás, o que fez realmente sentido foi o que ela disse, esforçando-se para conter o pranto, palavras dignas de um testamento: mesmo sem nos ver, você cuidou de nós.
De fato, as palavras têm outro valor quanto mais se conhece o enredo da cena, a vida dos personagens, os limites de cada um. O que eu veria se fosse cego? Que pecados não cometeria? De quais dores eu seria privado? De quais êxtases? A pergunta que depois ficou saltitando na mente foi: não seria melhor ser cego? Como se não fôssemos! O que não vemos, por fim, é muito mais do que aquilo que os olhos alcançam. A questão é conseguir olhar com os demais sentidos, com os afetos e as emoções, com os pés e com a fé, com a memória e além do horizonte... olhar sem medo... olhar com a dor e a partir dela e apesar dela... olhar e acolher... olhar e calar... olhar e amar...
Foi uma experiência que me fez parar. Descobrir apenas depois o seu limite – não por descuido meu, afinal, como supor isto? – levou-me a repensar tudo o que eu havia falado. Porém, não havia mais tempo para discursos. Restou eu e meus botões. E agora, estas linhas. Após seu testemunho amoroso, ressoou de sua boca duas palavras muito propícias para estes momentos: obrigado e me perdoe. Lembrei do Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, e fui conferir. Diz: “Tanto nos custa a ideia de que temos de morrer [...], que sempre procuramos arranjar desculpas para os mortos, é como se antecipadamente estivéssemos a pedir que nos desculpem quando a nossa vez chegar”.
É uma divagação tola, mas, se fôssemos cegos, acaso não veríamos apenas o que importa, somente o que faz sentido, nada mais do que o essencial. Quiçá enxergássemos a partir do que o corpo sente, para além das máscaras e sem elas a nos cobrir. Quisera fôssemos cegos para que a atenção não fosse tão inadimplente e estivéssemos livres deste que “é um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado dos mortos e não os ver...” – outra vez Saramago.
Cego e, agora, sem vida, ensinou-me mais do que poderia imaginar minha lesa inteligência. O que ele viu deveras, em vida, ninguém nunca saberá. O que ele vê agora, outro mistério insondável. E nós, o que vemos? Após o funeral, a pergunta que ficou saltitando na mente foi: não seria melhor ser cego? Quem sabe eu enxergaria melhor...