Pe. Fernando Steffens
A poesia deixa a vida mais leve...
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Textos
Outra carta aos aprendizes
 
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
[...]
Não sei por onde vou
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
(Cântico Negro – José Régio)

     A um ano eu iniciava uma série de cartas sobre diversos assuntos, auxiliado pela literatura poética, numa tentativa de deixar tudo mais leve, uma vez que os dias iam se desenhando cada vez mais difíceis. Foram em torno de vinte cartas, cuja primeira teve por título “Carta aos aprendizes”.  Nem dominado pelo pior pessimismo, imaginaria estar aqui escrevendo – ou reescrevendo – uma nova carta, ainda falando das mesmas coisas, um ano após. Das mesmas coisas? Ou há outras para serem trazidas à baila? Sempre há outras – coisas novas e velhas para serem tiradas do próprio tesouro, feito o pai da parábola (cf. Mt 13, 52). Difícil saber se elas já estão no tempo da maturação. Um ano é pouco para mudar o mundo, para tirá-lo de uma loucura e colocá-lo em outra.

     Iniciemos pelo que há de ser reconhecido como positivo: capacidade de adaptação. A lei da natureza que atesta ao animal racional da espécie Homo sapiens uma elevada performance em adequar-se ao meio, mais uma vez, falou alto. A vida acostumou-se a pandemia: máscara, álcool gel, cumprimentos, distanciamentos... Um novo modus vivendi incorporou-se, latu sensu, à nossa rotina familiar, social, profissional, religiosa... O tal “novo normal”. Embora outras não mudaram muito: continua a corrupção política, o interesse econômico impera forte, privilégios salvando uns, injustiças dizimando bem mais, violência familiar em alta, miséria correndo à solta, o individualismo continua marca destes tempos, Deus já nem é mais tão lembrado quanto no início de tudo, a desobediência adâmica continua a mesma... e por aí vai... Rapidamente a tentativa do olhar positivo se viu frustrada.

     Recomecemos, pois. A vida de muitos ganhou novo sentido e valor, desde a dos mais idosos – agora vistos, lembrados, existindo – até a vida familiar, as amizades e mesmo a vida de fé. Tanto quem perdeu alguém quanto quem superou a infecção tiveram oportunidades que antes, talvez, passassem despercebidas. Creio, não há quem não tenha parado a certa altura para refletir – um filosofar a respeito da vida em algum momento deste último ano. A saudade revalorizou a presença e as longas ausências devolveram importâncias, quem sabe, esquecidas. O tempo passou a ser gerido de outra forma. As prioridades mudaram e outras foram eleitas. Um velho conselho, por vezes tosco por ser antigo, ecoou novamente no inconsciente coletivo: “a vida não tem preço”. Há um sem-número de gente que se reinventou.

     Só que havendo o sol, haverá sempre sombras. Neste caso, não para um descanso apenas, mas para uma reflexão. Como pede Vinícios no poema, pensem nas crianças, pensem nas meninas, pensem nas mulheres, pensem nas feridas, mas não se esqueçam da rosa de Hiroshima. Parei para pensar nessas tantas rosas, ou sombras: Guerras, Auschwitz, Chernobyl, Vietnã, Torres Gêmeas...? O que foi tudo isso? Apenas dias e datas para serem lembrados? O que foi a escravidão? A noite de São Bartolomeu? A primeira Sexta-feira Santa? Com temor e horror, julgo que a Pandemia será apenas mais uma página da História, contada aos que não a viveram, investigada pelos que a estudarão, experimentada por nós. Tal como as demais tragédias, rosas para serem poetizadas. Porém, as crianças, as meninas, as mulheres, as feridas, os funerais, os desesperos, as lágrimas, as vidas perdidas, o desrespeito, os descasos, a nossa culpa... tudo isso cairá no esquecimento e a vida doente continuará sua sina. E outras rosas surgirão.

     Neste último ano a vida passou a ter outro centro, uma única preocupação tomou conta de tudo, apenas uma coisa se tornou necessária. Lembrei do que disse Jesus a Marta: Maria escolheu a melhor parte, a que não lhe será tirada (Lc 10, 42). Também antes da pandemia as escolhas determinavam os caminhos, implicavam consequências, precisavam ser discernidas. Continua sendo assim. O problema é que a gente não aprende, apenas nos acostumamos. Eis um grande risco. O costume se torna cego muito rapidamente. Ainda que tudo esteja entrando em colapso, isso já não assusta mais, a menos que a dor e o desespero bata à nossa porta. Os números, que no começo eram vidas e comoviam, passaram a ser somente números. As notícias, que traziam informações importantes, tornaram-se indigestas, repetitivas e estéreis. As autoridades divergem entre si quanto a caminhos corretos e todos nós, como sempre fizemos, temos opinião e solução para tudo.

     Olhada de revés, a pandemia não deixou o mundo doente, ela revela um mundo que já estava doente fazia tempo, ela expõe inflamações crônicas de outras ordens, ela nos coloca contra a parede – e lutamos para nos esquivar do soco –, ela nivela todas as vidas e as deixa igualmente vulneráveis diante do invisível, ela força repensar os próprios valores, ela confunde as lógicas vigentes. Olhada de revés, a pandemia nos faz rever até mesmo o conceito que temos de Deus – será que Ele ainda não teria escutado nossas preces? Faz-nos reavaliar o que entendemos por fé e “longe de nós pensar que crer signifique encontrar fáceis soluções consoladoras”, antes, ao invés de procurar atalhos, é enfrentar “de olhos abertos aquilo que lhe acontece, assumindo pessoalmente a responsabilidade por isso” (Papa Francisco).

     As soluções estão sendo encontradas lentamente e a preço muito alto, para muito além de cifras. Nunca, nunca saberemos o quanto terá custado esses dias até que eles se acabem. Pensem nas rosas de Hiroshima, nas rosas que não são rosas, nas rosas cálidas até o último sopro de vida – inalando um pouco do perfume do poema. Sei que são amargas boa parte de minhas palavras, mas não posso me omitir dizê-las. Há sentimentos avessos em todos nós. Há sensação de insegurança em toda parte. Há descontentamentos e cansaços e medos e lutos e indiferença e decretos e esperanças e óbitos...e há vidas! E aprendizes. O tempo dirá quais.
Padre Fernando Steffens
Enviado por Padre Fernando Steffens em 24/03/2021
Alterado em 06/04/2021
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