O som da tua voz
Procura meus ouvidos.
És única!
Mas não é tua voz que quero.
Acontece, vez ou outra, eu iniciar um texto e deixá-lo sem terminar, seja por limite, seja por alguma tarefa que me roube dali ou por outro motivo qualquer. Então, quando retorno a ele, os sentimentos já são diferentes, o estado de espírito idem, a tônica do que me traz de volta tem outros matizes e a velha página continua lá, incompleta. Abro novo documento e me aventuro em novas linhas. Não foi diferente desta vez: abri o arquivo, li o que estava registrado e decidi seguir outro rumo. O que estava escrito? Segue: “Quanto custa ser feliz a qualquer custo? Quanto custa pagar qualquer preço para ter o que se quer? Qual dívida vale a pena empenhar a troco de nem se sabe ao certo o que?” Apenas isso. Mas deixo aos leitores, se assim desejarem, as respostas... ou mais perguntas!
Quanto às minhas águas literárias, neste momento elas fluem por mares diferentes. Lembrei-me de Fernando Pessoa e sua estranha afirmação: “Navegar é preciso. Viver não é preciso”. Ele se referia ao salgado mar de Portugal, obviamente. Porém, o estranho verso, de repente, se revela profético e verdadeiro. Os argonautas de agora navegam – por águas superficiais, registre-se – e já não vivem. Ou, só vivem enquanto navegam. Afogam-se sem perceber, falta-lhes o ar da vida e não se dão conta, enxergam apenas por periscópios digitais, sem cheiro nem sabor nem calor, traiçoeiros deveras. Crianças, umas quase lactentes ainda, adolescentes, jovens, adultos, idosos, todos a navegar, comumente à deriva de tudo, sem norte em sua bússola, sem direção em seu leme, entorpecidos pelas ardentias que saltam a bombordo e a estibordo enquanto velejam, mas cujos brilhos viram nevoeiro, fumaça, noite muito cedo.
No texto que citei (e não acabei), há perguntas sobre os preços. Sim, é preciso navegar, tornou-se empresa indispensável, mas, que preço estamos pagando? Que redes lá nos prendem? Sim, em nossos tempos tecnológicos, navegar é preciso, mas a vida acontece no chão da realidade, não no mar da virtualidade. Navegar é preciso, é fato, mas aproar é mais ainda. Estamos, parece-me, perdendo – e muito rapidamente, o que é mais grave – a distinção entre presença física e presença online. Esta não substitui aquela, indubitavelmente. E estas ausências físicas, com o passar do tempo, geram lacunas e carências no interior humano, causam solidões que afetam diretamente o estado de felicidade. Em um curto espaço temporal, tornou-se impossível viver sem estar conectado. Contudo, neste mesmo ínterim, a gente nivelou o celular a alguém que está diante de nós, conversando conosco. Em outros tempos, era norma de boa educação – as crianças desde cedo aprendiam – não interromper a conversa dos outros. E o que vemos agora? Um bando de deseducados, pois simplesmente ignoramos quem está falando presencialmente para darmos “ouvidos” aos ausentes. Interrompemos os diálogos, descartamos as presenças. Estamos, isto sim, de corpo presente apenas.
Haverá, é verdade, um dia em que apenas um corpo presente estará. E, julgo eu, ainda assim continuaremos navegando e registrando longos discursos, jamais lidos por aquele a quem tais palavras serão dirigidas. Quando quem não está atrai mais do que quem se encontra presente, que nome damos a isto?