Certas intuições simplesmente acontecem. E quando elas não se dispersam com o vento, é inevitável: tornam-se textos. Havendo motivos, fico à varanda, ante um peristilo poético, observando as palavras e os pensamentos se movimentarem ao centro até que peçam para si o papel. E cá estou porque li:
“[...] Ó Deus,
me deixa trabalhar na cozinha,
nem vendedor nem escrivão,
me deixa fazer o Teu pão.
Filha, diz o Senhor,
eu só como palavras.”
Diga-me, Adélia, por favor, como consegues ser faminta e saciável ao mesmo tempo! Que espiritualidade poética é esta que te permite este versículo: “eu só como palavras”? De imediato, ecoou outro dentro de mim: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.” E, agora, vens me dizer que o próprio Deus se alimenta também de palavras. Quais bocas o sacia? A de Paulo, de Agostinho? A do Padre Antônio Vieira? A de Teresa D’Ávila? Ou a tua? E quais não?
E, então, surge a intuição: e se nos prestássemos a isto, antes de palavrear: saciar fomes. Quanto do que dizemos realmente serviria para ir às mesas dos nossos ouvintes? Verdades e mentiras. Vulneráveis e expostas. Faladas ou caladas. Alimento ou veneno. Tudo são palavras: mal ditas e bem ditas, malditas e benditas. Veja, que nobre responsabilidade é o falar e o escrever. Ei-las, as palavras, protagonistas sabe-se lá do que, uma vez lançadas aos ouvidos. Sim, o destino imediato das palavras são os ouvidos. Depois, aterrizam nos pensamentos, nos sentimentos, na alma. E vão criando mundos por onde passam.
Que nem todos escrevam, tudo bem!. Mas que todos comemos palavras, certamente – tal como Deus na poesia de Adélia. “...me deixa fazer o Teu pão. Filha, eu só como palavras.” Portanto, há uma fome que carece de outros banquetes. Livros, bibliotecas, coletâneas, compêndios, volumes e mais volumes prontos a nutrirem seus leitores. Palavras a espera de diálogos que resignifiquem os entornos. Ou, silêncios prenhes de vidas, dadas à luz por meio das palavras que, porque fecundas, sustentam.
Por um instante, parar, ler, ouvir, refletir, calar. Por um instante, fugir da dança frenética e barulhenta de palavrórios e saboreá-las, as palavras, em outro timbre, outro ritmo. Por um instante, compreender seu poder, seu alcance, sua capacidade sedutora, sua fome. Por um instante, ainda que rápido, dar-se ao deleite de versos que nos elevam. Por um instante, comer palavras – como que obedecendo ao profeta: “Toma o livro e come” (Ez 3,1).
Quando, já tarde da noite, li O poeta ficou cansado, donde extraí o versinho inspirador, fiquei saciado e, ao mesmo tempo, com fome. Passei dias aqui nesta cozinha literária e cheguei a este último parágrafo, tentando parir o que em mim se fez carne ou pão ou texto ou mais fome ainda. Saciarei alguém? “Famintarei” alguém? Nem Adélia nem eu saberemos... Tentativas, pobres tentativas...