Pe. Fernando Steffens
A poesia deixa a vida mais leve...
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Textos

     Sobre outra fome

     Certas intuições simplesmente acontecem. E quando elas não se dispersam com o vento, é inevitável: tornam-se textos. Havendo motivos, fico à varanda, ante um peristilo poético, observando as palavras e os pensamentos se movimentarem ao centro até que peçam para si o papel. E cá estou porque li:

     “[...] Ó Deus,

     me deixa trabalhar na cozinha,

     nem vendedor nem escrivão,

     me deixa fazer o Teu pão.

     Filha, diz o Senhor,

     eu só como palavras.”

 

     Diga-me, Adélia, por favor, como consegues ser faminta e saciável ao mesmo tempo! Que espiritualidade poética é esta que te permite este versículo: “eu só como palavras”? De imediato, ecoou outro dentro de mim: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.” E, agora, vens me dizer que o próprio Deus se alimenta também de palavras. Quais bocas o sacia? A de Paulo, de Agostinho? A do Padre Antônio Vieira? A de Teresa D’Ávila? Ou a tua? E quais não?

 

     E, então, surge a intuição: e se nos prestássemos a isto, antes de palavrear: saciar fomes. Quanto do que dizemos realmente serviria para ir às mesas dos nossos ouvintes? Verdades e mentiras. Vulneráveis e expostas. Faladas ou caladas. Alimento ou veneno. Tudo são palavras: mal ditas e bem ditas, malditas e benditas. Veja, que nobre responsabilidade é o falar e o escrever. Ei-las, as palavras, protagonistas sabe-se lá do que, uma vez lançadas aos ouvidos. Sim, o destino imediato das palavras são os ouvidos. Depois, aterrizam nos pensamentos, nos sentimentos, na alma. E vão criando mundos por onde passam.

 

     Que nem todos escrevam, tudo bem!. Mas que todos comemos palavras, certamente – tal como Deus na poesia de Adélia. “...me deixa fazer o Teu pão. Filha, eu só como palavras.” Portanto, há uma fome que carece de outros banquetes. Livros, bibliotecas, coletâneas, compêndios, volumes e mais volumes prontos a nutrirem seus leitores. Palavras a espera de diálogos que resignifiquem os entornos. Ou, silêncios prenhes de vidas, dadas à luz por meio das palavras que, porque fecundas, sustentam.

 

     Por um instante, parar, ler, ouvir, refletir, calar. Por um instante, fugir da dança frenética e barulhenta de palavrórios e saboreá-las, as palavras, em outro timbre, outro ritmo. Por um instante, compreender seu poder, seu alcance, sua capacidade sedutora, sua fome. Por um instante, ainda que rápido, dar-se ao deleite de versos que nos elevam. Por um instante, comer palavras – como que obedecendo ao profeta: “Toma o livro e come” (Ez 3,1).

 

     Quando, já tarde da noite, li O poeta ficou cansado, donde extraí o versinho inspirador, fiquei saciado e, ao mesmo tempo, com fome. Passei dias aqui nesta cozinha literária e cheguei a este último parágrafo, tentando parir o que em mim se fez carne ou pão ou texto ou mais fome ainda. Saciarei alguém? “Famintarei” alguém? Nem Adélia nem eu saberemos... Tentativas, pobres tentativas...

Padre Fernando Steffens
Enviado por Padre Fernando Steffens em 16/08/2022
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