Cordeiro de deus que lava os pecados do mundo
Me diga quantas maçãs há no paraíso terreno.
(Nicanor Parra, Agnus Dei)
Indo direto ao ponto: rebanho e pastor, nos tempos atuais, ambos estão fragilizados na fé. O espírito da modernidade, para usar um termo consensual, infiltra-se cada vez mais nas pessoas. Camuflado nas mais diversas formas – éticas e estéticas, pública e privada –, faz da dimensão espiritual constitutiva do ser humano uma superfície rasa, a despeito do que realmente é: intensa profundidade. “No íntimo do ser humano existe Deus”, lembra-nos Santo Agostinho. Porém, se Deus apenas desliza pela superfície do humano, tão logo a vida nos leve a mergulhos profundos, faltar-nos-á o fôlego, assustar-nos-á as adversidades, desesperaremo-nos ante as inseguranças, justamente por a fé encontrar-se frágil, medíocre, superficial, sem matéria, sem conteúdo, sem esforço. Puro espiritualismo ou superstição.
A possibilidade de crítica a este espírito maléfico, contemporâneo à Modernidade, não se reduz a uma errônea condenação de tudo, como outrora a própria Igreja fez, a exemplo do Syllabus, do Papa Pio IX, em meados do século XIX, fechando-se aos avanços científicos e tecnológicos que principiavam. Sim, a Igreja deve acompanhar o desenvolvimento da humanidade, contudo, ajudando a discernir e filtrar o que convém e o que não convém à fé. É preciso, pois, abrir os olhos e mirar em volta: até onde já fomos engolidos, naufragados, ou, vamos à deriva na vida de fé, quando esta se vê contaminada por outros espíritos? Que real impacto tem na fé e na vida das pessoas, particularmente, o primeiro mandamento: amar a Deus sobre todas as coisas, com todo o coração, toda a alma e todo o entendimento, diante de tantas opções mais atraentes e menos exigentes que o mundo apresenta?
O que se percebe, em geral, é a falta de compromisso cada vez mais presente em nossas comunidades, o que revela uma fé desnutrida, sem robustez, sem radicalidade, reduzida a um mero sentimento – por vezes, barato. Assumir um trabalho pastoral, uma responsabilidade de liderança, uma missão que vai custar empenho, tempo, incômodo, aderir a uma proposta que faça sair da zona de conforto, dar a vida pela causa do Evangelho, tais escolhas são abafadas pelo espírito da modernidade que insufla sempre mais o ar do individualismo, da terceirização das responsabilidades, da lei do menor esforço, das desculpas e justificativas, do “o que eu vou ganhar com isso?” e assim por diante. Mais nãos do que sins dados a Deus, à Igreja, à cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, aos deveres que a fé requer, a sacrifícios e verdades que custam, a um sincero desejo de santidade. De outro lado, mais sins do que nãos às modas do momento, às ideologias colonizadoras de consciências, a satisfações e prazeres pessoais, ao eu do que ao nós, ao meu do que ao nosso, ao deus fácil dos milagres do que ao Deus fiel da cruz.
Este espírito do “eu vou aonde me agrada”, “eu faço o que me convém”, “eu acredito no que eu quero”, “eu dito as minhas regras”, “tudo é relativo” e demais cânones afins, têm lá os seus limites, inclusive no que toca a fé. Um princípio básico da relação com Deus é a obediência aos seus princípios, valores e ensinamentos que, para nós cristãos católicos, estão fielmente contidos na doutrina pregada, documentada e atualizada. As bases dessa educação na fé são a Sagrada Escritura, a Tradição que provém dos Santos Padres e o Magistério. Não inventamos a nossa fé, a recebemos como dom de Deus, a professamos com a Igreja, com a Comunidade e devemos praticá-la concretamente, traduzindo-a em obras, em atitudes, em compromisso, em resposta ao Senhor que nos desestabiliza, chama-nos ao seu seguimento, e não às esfarrapadas desculpas, às medíocres conveniências. A obediência que brota da fé não é subserviência a um senhor qualquer. É, acima de tudo, a firme convicção de que só há um caminho, que não se faz largo à minha frente, tampouco de fácil travessia, porém, único e necessário, cujo norte aponta para Deus e não para um partido, uma ideologia, uma recompensa material, uma felicidade condicionada a ordens econômicas, uma promessa fajuta que se dissolverá com o tempo.
Isto tudo afeta, como disse, rebanho e pastor. Ambos precisam de constante vigilância. Não se iluda, querido povo, que o padre da tua comunidade seja imune às seduções do espírito mundano, que ele não corre o risco de cair em suas teias, ou, não sofra em seu ministério as consequências destas réprobas inadimplências da fé da sua grei. Toda fidelidade tem seu custo e suas graças, assim como, toda corrupção tem seu preço e suas desgraças. Tal é na vida pública, profissional, familiar e espiritual. O espírito maléfico ao qual nos referimos aqui, desmente tudo isto, prometendo a felicidade facilmente, cujo prejuízo é um enorme vazio interior – mais cedo ou mais tarde.
Diante deste quadro, como manter a verdadeira chama de Deus acesa, feito aquela do santuário onde Samuel estava (1Sm 3,3)? Penso que identificar pequenas alegrias dentro de um dia de trabalho seja fundamental. Desenvolver uma sensibilidade espiritual que capte fagulhas divinas ao invés de esperar apenas sinais prodigiosos. Dar ao ordinário, ao cotidiano, a chance para que a encarnação do Verbo aconteça novamente, simples e comprometida como a vida em Nazaré. Embora pareça fácil, não é. É o desafio de declamar a poesia latente nas dobras das horas de cada dia. Conheço quem já vive nessa busca e beira a plenitude evangélica.
Sem abandonar os grandes ideais, penso, ainda, que não criar expectativas muito grandes também se faz mister. Do jeito que as coisas andam, estamos caminhando para comunidades com cada vez menos catequistas, menos ministros, menos leitores, menos lideranças, seminários com menos vocações, dioceses com menos padres. São os tempos e suas crises: ontem umas, amanhã outras, hoje as nossas. Não estamos mais na Cristandade, é preciso tomarmos consciência disso.
E, o mais exigente e mais urgente: dar a Deus o seu correto lugar. De todos os pecados, a idolatria ocupa o primeiro lugar da lista: trocar Deus por outros deuses é gravíssimo. É adultério. E como nos vemos rodeados de deuses, de templos, de liturgias e de seus fiéis dizimistas por aí. Que seja dito: ou Deus é tudo ou Ele não será nada. Não se trata de colar adesivo de frase bíblica no carro, de fazer uma tatuagem denotando fé ou participar de tour religioso. Deixá-Lo ser o Senhor da vida e da história nossa é fazer Dele o critério das nossas decisões, o referencial da Verdade, uma necessidade diária, feito pão e água. É não ter ambições desmedidas e entender que Deus e dinheiro são realidades bem antagônicas, cada qual com sua medida e suas promessas.
Creio que estas três buscas – pequenas alegrias cotidianas, expectativas mais comedidas, Deus em seu correto lugar – podem proteger a fé do caos. Não é um catecismo de regras, tampouco uma receita de bolo. É um pequeno caminho de santidade, exigente e saboroso.