Os bons velhos tempos? Mas os tempos são sempre bons, a gente é que não presta mais.
(Mário Quintana, Caderno H)
Anos atrás escrevi estes versinhos: “Alguns me causam nojo/ Alguns, medo./ Os demais me encantam./ Mas não viemos todos do mesmo barro?”. Na época eu ainda não era padre, apenas um estudante em vias de. Após estes poucos anos de ministério, sinto que foi a poesia mais verdadeira que escrevi até hoje. Os uns e outros da poesia são, de fato, ora um ora outro, bem distintos, ora o mesmo, apenas em dias diferentes, ou, eu próprio em minhas imperfeições e dualidades. Tem dias que os encantos são maiores, tem dias nos quais o asco é tanto que dá náusea, tem dias que resta o medo. Este barro genesíaco, por vezes matéria informe, por vezes um poema apenas começado (como disse Heidegger), é e sempre será, a coroa da criação divina.
A ele foi dito não matarás, decerto, porque se sabia de seu talento para a chacina, a hecatombe, a guerra, o horror, a morte. Foi-lhe dito não roubarás devido aos sinais de ganância manifestados em interesses escusos, em olhares consumistas, em atos suspeitos, em cobiças e apetites desmedidos. Não julgarás, outra advertência superior, uma vez que se auscultou em suas falas intencionais o desejo de tirar de seu caminho alguém semelhante a si, por coisas que ele mesmo seria capaz. Porque seu coração fora tomado pelo que não lhe pertencia, mais um mandamento se fez necessário: não trairás. Matar, roubar, julgar, trair e outras misérias mais: afinal, somos barro ou lamaçal?
Mas não sejamos apenas manchete de noticiário policial. Afinal, “Os demais me encantam”. E onde os encontro? Sim, nas crianças, em idade e espírito, com aquela risada que, ah meu Deus, salvou meu dia. Gargalhadas afinadas, livres, inocentes, contagiantes. Uma oração! “Eu fico com a pureza da resposta das crianças...” – canta o poeta. Eu os encontro nos bons pais, aqueles que sabem dizer sim e não. Aqueles que criam filhos (e não seres superprotegidos/ “a princesinha da mamãe”). Pais de comprovada virtude. Pais que não têm medo de ir na contramão do normal, optando pelo caminho do saudável, impondo limites: escolherá o presente quando puder pagar, meu filho; celular só na idade certa, minha filha; nota baixa = chinelo na bunda; quem decide é o pai e a mãe e pronto e não adianta chorar... Encontro-os nos bons amigos, estes que conhecem a nossa alma. Pessoas que o destino se encarregou de pôr em nosso caminho. “Quem o descobriu, descobriu um tesouro” (Eclo 6,14). Tem amizades sazonais, tem amizades que surgem de repente, tem amizades que celebram bodas de ouro. E todas elas, um encanto! Não acabou. São encontrados ainda no que anuncio como epifanias de bondade. Aqueles gestos que simplesmente emocionam. Pérolas encontradas no ordinário da vida e que a preenchem de poesia. Existem aos montes por aí, contudo, é fato pouco noticiado. E é preciso apurada sensibilidade para recolhê-las, feito fé que dispensa milagres para crer – torna-se bem mais exigente! Estas incontáveis epifanias salvam a vida e o mundo do caos, do lodo, da lama. É argila fértil nas mãos do oleiro. As crianças, os bons pais, as boas amizades, as epifanias de bondade e tanto mais: são aqueles demais que me encantam!
É o que somos: barro e lama – um e outro, nuns e noutros. Apesar do nojo, apesar do medo e diante dos encantos: eis-nos. Caminhando para o precipício ou tomando consciência dele? Uns e outros, em que ponto estamos nestes tempos compulsivos, nesta Idade Artificial, neste mundo que construímos para viver?