Era depois do parto, e tudo úmido repousava, tudo úmido e morno respirava.
Maria descansava o corpo cansado – sua tarefa no mundo e diante dos povos e de Deus seria a de cumprir o seu destino, e ela agora repousava e olhava a criança doce.
José, de longas barbas ali sentado, meditava, apoiado no seu cajado: seu destino, que era o entender, se realizara.
O destino da criança era o de nascer.
(Clarice Lispector)
Indo-se os pastores, indo-se os reis magos, a noite voltou ao seu silêncio original. É certo que ainda ressoavam os nãos recebidos nas hospedarias, as portas fechadas raivosamente, como se fossemos alguma presença indesejada. Por graça divina não houve dores no parto, apenas o choro natural de uma criança vinda ao mundo. Não sei como explicar, mas, era um choro em outro tom. Ali, ao lado da gente, José descansava. Eu olhava o nosso menino que dormia tranquilo em meu colo. E nem parecia que tudo aquilo estava acontecendo. Mal sabia eu o que estava por vir. Como fosse uma voz que eu ouvia dentro: guarde tudo no coração, assim decidi fazer. Se os filhos soubessem quanta coisa há no coração de uma mãe! Estava eu apenas aprendendo as primeiras lições da maternidade.
Pensei em Isabel. Pensei nos dois meninos crescendo juntos, caso mudássemos de cidade. Pensei nos meus pais e em como ficariam felizes por verem seu neto. Pensei na nossa Nazaré, na nossa casa, nas lições que eu teria que passar a ele, nas outras crianças com as quais iria crescer. Rute e Dalila também estavam prestes a dar à luz. Seriam mais dois meninos? Aquela pequena vila repleta de crianças. A vida sempre se renovando. Pensei nos rituais do nosso povo. Sendo um menino, passaria por todos eles, o primeiro já daqui a oito dias. Pensei em Deus e bendisse o seu nome. Embora muitas coisas sejam incompreensíveis, creio que tudo tem o seu tempo. Aquela era a hora de contemplar, de rezar e de guardar no coração – conforme a voz interior sussurrava.
Apesar da longa viagem, não me sentia cansada. Pelo contrário, uma alegria e uma força me habitavam. Porém uma coisa me inquietava: aquelas três visitas. Os pastores a gente conhece. Coitados, ficam como vigias esperando a aurora. Têm um trabalho, por sinal, pouco valorizado. Mas os outros, com aquelas vestes todas, e uma comitiva, eu diria, suspeita, me fizeram recuar. Era engano? Onde ficava este tal Oriente de onde vinham? O que, afinal de contas, eles intencionavam? Ou era alguma providência de nosso Deus? Deixaram os presentes ali e se foram. Pareciam mais alegres na ida do que na chegada. Iriam tomar outro caminho, segundo o que disseram. Será que teriam mais alguém para visitar? Se não faço ideia de onde vinham, também não adivinho para onde iam. Recordo, ainda, que falaram algo parecido com isso: viemos ver o rei que acaba de nascer. Palavras sem muito sentido. Realmente, isso me perturbou. Não foi a primeira vez que experimentei essa sensação. Naquela outra visita estranha, quando da gravidez, eu também me senti assim: perturbada, inquieta, desconfortável. Embora, logo em seguida, o shalom tenha tomado conta de mim por inteiro e nunca mais me abandonou. Nunca mais. Enfim, vai ver que é coisa de mãe de primeira viagem – pensei. Será que nas próximas vezes seria igual? Ser mãe é sempre assim, cheio de mistérios? Será que haveria próximas vezes? – e o pensamento foi longe...
Mas não era momento para essas perguntas. Tudo conforme a vontade de nosso Deus. “Mostrai-me, Senhor Deus, vossos caminhos. Fazei-me conhecer a vossa estrada”. É assim que está no saltério. É assim que desejei. Daqui a pouco ele iria acordar e chorar. Teria que dar de mamar pela primeira vez. Ainda bem que eu tinha o meu José ao lado. É um bom marido, sei que vai me ajudar no que for preciso. Ao longo de toda a viagem, não fez outra coisa senão se preocupar com a gente. Como eu queria poder ver outra vez o sorriso que deu quando viu que nosso primogênito era, de fato, um menino. Que alegria para ele. Desde o início, minha intuição estava certa. Mas ele, ele precisa ver com seus olhos. Logo o imaginei ensinando o ofício a Jesus: entalhar a madeira, apoiar no ângulo certo, reconhecer e distinguir uma e outra, manejar a enxó, aprumar a vertical com a horizontal, até formar uma cruz, fazer um preço justo, sem nunca deixar de ajudar os mais pobres, embora também fossemos... Que nossa benção pudesse crescer em sabedoria, idade e amor, era tudo o que queríamos.
* * *
Tantos anos se passaram e estas lembranças me ocorrem agora, sem mais. Por quê? Óbvio: é o primeiro ano sem ele ao meu lado. E esse cheiro de pão pronto para sair do fogo se mistura com todas essas memórias e deixam ainda mais vivas minhas lembranças. Dá uma vontade de chorar... Era comum quando, logo cedo, eu começava a mexer a farinha e o fermento, ele dizer: até nosso Deus comeria desse pão. Soava como um elogio aos meus ouvidos. Eu me sentia a mulher mais feliz do mundo. Nossa casa sempre foi simples, como as demais aqui da vila. Pelas frestas a luz do dia entrava, como que em pedaços, sobre a mesa sempre pronta uma jarra com água para a sede e, apesar de ter sido sempre só nós três, parecia que vivia sempre cheia essa casa. Continuo feliz, mas tenho que confessar: tu fazes muita falta, meu bom José. Muita falta. Quanto ao nosso menino, pois é, agora entendo. Ele está ocupado com as coisas do seu Pai. Que também é nosso.