Se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse; acuse-se a si próprio de não ser muito poeta
para extrair as suas riquezas
Ranier Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta
Não aconteceu nada de extraordinário naquele dia – já se contam trinta e nove anos desde então. Avisa o calendário ter sido uma segunda-feira e, óbvio, foi bem depois que fiquei sabendo que eu era dado à luz por minha mãe. Vinha sem porte suficiente. Sem condições de sobrevivência, segundo o médico. Colocado na incubadora, não reagia. Chama o padre! – e assim fizeram meus pais, vinte dias após. Novamente dado à luz, ou melhor, à Luz, no batismo feito às pressas. E Deus começou o seu trabalho. Cá estou hoje e reafirmo: nada de extraordinário naquele dez de março de oitenta e seis. Cá estou hoje e professo: basta-me o Deus do ordinário. Porque o que mantém a vida de pé é o cotidiano.
Ano que vem, tanto os de hoje quanto os que forem se juntando pelo caminho até lá, dirão novamente as mesmas coisas. Em tons e cores um pouco diferentes, é verdade, mas, as mesmas coisas. E nem é para ser diferente. Celebrar aniversário faz parte do cotidiano. O extraordinário talvez esteja na diferença que passamos a fazer na vida de quem caminha junto conosco. Nas tantas vidas afetadas, atingidas, tocadas, marcadas pela nossa. Certa vez fui visitar um senhor doente que pouco depois faleceu. No final da visita, dei-lhe um beijo no rosto. Ele disse, em tom emocionado: nunca um padre tinha me beijado. Até hoje escuto a sua voz. Até hoje arrepia-me a lembrança. Até hoje, no ordinário da minha vida sacerdotal, desponta aquele extraordinário senhor que me marcou para sempre e cujo nome nem sequer eu lembro. Parece-me que sua recíproca seria verdadeira caso ainda estivesse entre nós.
Em Rumo à felicidade, de modo breve e profundo, Fulton Sheen reflete sobre o Contentamento, algo que precisa ser construído dentro de cada um. Ninguém é naturalmente contente. É preciso adquirir esta virtude. E a certa altura, assim diz o Venerável: Tentar fazer feliz um descontente é o mesmo que tentar encher de água uma peneira. Porque o mundo oferece aos de hoje possibilidades aos milhares, quando de pouco se precisaria, as pessoas se veem perdidas. Perdemos o prazer do ordinário, do simples, do prosaico, do comum. E é impossível viver tão somente das coisas extraordinárias, porque o que mantém a vida de pé é o cotidiano – seja ele suportável ou não.
O Evangelho, em boa dose, é costurado pelas coisas do dia a dia: um homem preparando a terra e lançando a semente, uma mulher mexendo a massa do pão, um camponês buscando um animal desgarrado, ali umas pessoas famintas, aqui pessoas doentes, alguém chorando a morte de alguém e outros sorrindo um nascimento, gente sem trabalho na praça, dois amigos caminhando e falando das coisas da vida, uma senhora varrendo a casa, outra acolhendo a visita, um pai preocupado com a sua filha, um filho que resolve sair de casa, alguém que pede um copo de água, outro que pede uma esmola... Retratos da vida que passa à nossa frente, seja onde for. O milagre, a cura, o espanto, a epifania, o êxtase, o assombro não pertencem ao trivial, não fabricam o pão nosso de cada dia. É o cotidiano que mantém a vida de pé.
Não que seja fácil alcançar a sobriedade do cotidiano. A vida é também um pouco complicada. Viver é também um drama. Ainda assim, busco o encanto do tempo de cada coisa, daquilo que me acontece todo santo dia, desta sagrada liturgia do viver. Beirando quatro décadas é preciso fazer algumas sínteses e tirar algumas lições. A primeira delas: somos emocionalmente frágeis. Segunda lição: perdemos muito tempo com coisas inúteis. Terceira lição: com o passar do tempo, as certezas devem ser suficientes, ainda que haja muitas dúvidas. Quarta lição: nada há que seja totalmente fácil. Quinta lição: vamos perder alguém no caminho. Sexta lição: haverá arrependimentos. Sétima lição: é preciso ter amigos, é preciso confiar em alguém. Oitava lição: o que mantém a vida de pé é o cotidiano.
E já deixo avisado: daqui uns tempos irei revisitar este texto e reeditá-lo. Sigo o que aprendi com Mario Quintana: Quando dês opinião, nunca deixes de escrever a data... Pe. Fernando Steffens, 10/03/2025.